Corpo morto no cimento: O que diz a ciência forense?

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Recentemente, fui surpreendido por um vídeo do programa Caçadores de Mitos (MythBusters). Para quem não conhece, é um programa de entretenimento que busca testar a veracidade de diversos mitos. Criado nos anos 2000 e transmitido pelo Discovery Channel, aparentemente ainda está em atividade. Apesar de eu ter uma opinião negativa sobre a qualidade metodológica de alguns experimentos e conclusões do programa, acredito que ele tenha um papel educativo relevante, especialmente ao incentivar o público a questionar e testar suas crenças. Além disso, é, sem dúvida, uma fonte de entretenimento.
O vídeo que me chamou a atenção tratava de um experimento curioso: testar a eficácia de esconder um corpo dentro de uma estrutura de concreto, supostamente para evitar sua descoberta e inibir odores. Embora o tema seja bastante inusitado, ele despertou minha curiosidade, levando-me a buscar estudos científicos e casos reais sobre o assunto. Encontrei artigos interessantes que exploram tanto experimentos quanto casos investigados em que suspeitos tentaram utilizar concreto para ocultar crimes.
Neste texto, apresentarei alguns casos documentados e, em seguida, explorarei o processo de decomposição de corpos dentro do concreto.
Alerta: o conteúdo é sensível e pode ser perturbador para algumas pessoas.
Casos reais de corpos ocultados em concreto
Embora esconder um corpo em concreto pareça uma estratégia eficaz para ocultação, essa prática apresenta diversas problemáticas. Inicialmente, o concreto pode dificultar a localização do cadáver; no entanto, ele também preserva o corpo e as evidências, o que pode ser desvantajoso para os criminosos. A seguir, descrevo alguns casos ilustrativos.

Caso 1: O esqueleto sob a calçada em Los Angeles

Em Los Angeles, trabalhadores encontraram um esqueleto de uma pessoa dentro da calçada. Os peritos tiveram todo o cuidado para fazer a análise desse resto mortal para obter o máximo de informações possíveis, inclusive tentar preservar a própria “cova de cimento”. Para isso usaram práticas de escavação arqueológicas encontrando assim uma cova que estava a pelo menos 50 centímetros da superfície. Abaixo da calçada tinha uma camada de terra e em seguida o concreto com o corpo em decúbito dorsal com os braços cruzados.
Pela posição que as roupas foram preservadas, foi possível descrever como foi o despejo de cimento sobre o corpo, que foi realizado no seu tórax. Um detector de metal foi utilizado para fazer uma análise minuciosa sobre de potenciais evidências, assim como a análise manual, que encontraram uma carteira de cigarro. Esta carteira de cigarro estava desgastada, mas ainda sim foi possível fazer a sua reconstrução e identificando informações como a marca, cor e outras conteúdos informativos do cigarro, podendo identificar o cigarro era um Liggett & Myers Menthol Long, distribuído como um teste de marketing em Março de 1974 até março de 1975. Essa informação já foi possível ver a lacuna de período de quando o corpo foi ocultado.
O concreto também foi analisado detalhadamente e visto que possuía uma fina camada de textura. Então preencheram esse concreto com silicone para reconstruir a mão e o rosto da vítima. O rosto reconstruído foi conduzido a um artista forense para criar o retrato falado que seria levado para mídia e a mão foi utilizada para obter as impressões digitais. Ambas tiveram sucesso na identificação da vitima.
 Modelo de silicone da mão direita da vítima, produzido para obtenção de impressões digitais.
Modelo de silicone da mão direita da vítima, produzido para obtenção de impressões digitais.
Na autopsia do corpo, em seu crânio foram encontrados mais de 30 marcadas de instrumento perfurocortante, o que induz a entender que uma faca foi utilizada, confirmada pela sua ponta que foi encontrada através de uma radiografia. Essas evidências confirmam que a causa da morte foi um homicídio.
O suspeito identificado foi o dono da casa no período de 1974, o seu vizinho confirma que o mesmo foi quem havia feito a calçada e que a vítima morava com o acusado nesse mesmo ano.
Crânio da vítima com marcas visíveis, indicadas pela seta, causadas por um objeto perfurocortante.
Crânio da vítima com marcas visíveis, indicadas pela seta, causadas por um objeto perfurocortante.

Caso 2: A criança no tambor de concreto

O segundo caso foi de uma criança de 8 anos do sexo feminino. O corpo foi encontrado graças a denuncia do tio da vítima, que avisou a policia que o corpo foi colocado em uma lata de lixo e preenchida com concreto. Tinha em torno de 130 litros de cimento com a lata pesando em torno de 200 kg no fundo da residência da tia da vítima.
Utilizando um fluoroscópico, um equipamento que consiste de raio x foi possível ver a posição do corpo, de cabeça para baixo, quando a lata estava parcialmente preenchida de cimento. Com a análise do equipamento médico também foi possível verificar uma fratura curada na mão esquerda. A análise do corpo também encontrou uma hemorragia e um edema abaixo do couro cabeludo, algumas contusões e hemorragias no rosto, uma perfuração na parte de trás da cabeça, queimaduras de cigarro, lacerações após a morte (provavelmente devido a movimentação do corpo) e com as palmas enrugadas devido a exposição em ambiente úmido.
Cabeça da vítima parcialmente exposta durante o início da remoção do corpo do concreto.
Cabeça da vítima parcialmente exposta durante o início da remoção do corpo do concreto.
Apesar dessas características de tortura, a causa da morte foi identificada pelo exame toxicológico, onde foi identificado altos níveis de etanol e desipramina (medicação para depressão) no sangue, no fígado e também no seu conteúdo estomacal. Além disso, a contribuição da causa por síndrome da criança maltratada e asfixia.
A tia e o tio da vítima admitiram que tinha habito de confinar a criança como método de castigo e que encontraram ela morta no closet, aparentemente morta por overdose de remédio e álcool e por isso tentaram esconder o corpo.
Corpo da criança após a completa remoção do concreto.
Corpo da criança após a completa remoção do concreto.

Caso 3: A mulher no bloco de concreto

E o terceiro caso uma mulher de 33 anos que foi encontrada dentro do porão e cimentando parecendo um banco. O corpo de quatro meses de decomposição foi localizado com a ajuda de um cão farejador. A vítima passou a morar na casa após sofrer um derrame e ficou sob os cuidados do ex namorado e da sua atual esposa. Porém as duas mulheres tinham conflitos frequentes, onde a esposa acabou matando-a por sufocamento no quarto, uma exigência também de seu marido como prova de amor para o relacionamento. O copo foi enrolado em filme plástico e fita adesiva antes de ser cimentado.
Bloco de concreto utilizado para ocultar o corpo da vítima, após o assassinato cometido pelo ex-marido e sua atual companheira.
Bloco de concreto utilizado para ocultar o corpo da vítima, após o assassinato cometido pelo ex-marido e sua atual companheira.

Estudos científicos sobre decomposição em concreto

Além de diversos casos reportados por especialistas. Também existe a documentação de experimentos realizados para se entender melhor como é a decomposição do corpo nesses casos em que eles são ocultados dentro do cimento.
Um estudo italiano sobre a decomposição de carcaças de porcos enterrados em cimento foi realizado para explorar alterações macroscópicas e microscópicas de tecidos. O experimento utilizou quatro porcos que morreram de causas naturais, os quais foram colocados em blocos de cimento e analisados após períodos de 1, 2, 3 e 6 meses. A escolha de leitões se deu por sua semelhança anatômica com humanos e pelo tamanho prático para o experimento. A metodologia incluiu análises macroscópicas e histológicas das alterações nos tecidos, documentando as fases de decomposição como putrefação inicial, mumificação e formação de adipocera (conhecido do processo de saponificação).
Os resultados macroscópicos indicaram que a decomposição em cimento inicia-se rapidamente, mas o cimento parece desacelerar o processo em longo prazo. No sexto mês, foi observada uma preservação significativa de tecidos através da formação de adipocera, especialmente em áreas ricas em tecido adiposo. As análises histológicas demonstraram que, mesmo após meses, algumas estruturas, como a derme, permaneciam identificáveis, o que sugere que o cimento retarda as alterações histológicas em comparação a outros ambientes.
Foi destacado que o ambiente de cimento tem propriedades únicas que influenciam a decomposição, como a preservação dos tecidos e a formação de adipocera. Em contraste com outros estudos, os resultados mostram que o cimento pode preservar padrões histológicos que são úteis para análises forenses mesmo após longos períodos. Isso reforça a importância de realizar análises histológicas, mesmo em casos avançados de decomposição.

Considerações finais

Baseados nos casos demonstrados e assim como nesse experimento discutido podemos ver que cimentar o corpo leva a retardar a decomposição e a preservar diversos detalhes do corpo extremamente úteis para a investigação e análise forense. Bem como também é possível identificar a localização do corpo mediante a uma investigação, logicamente esses pontos podem variar de acordo com a técnica empregada e a profundidade a qual o corpo é enterrado, mas esses pontos também irão variar mesmo em um cadáver enterrado em solo.

Referencias

  1. PREUß, J.; STREHLER, M.; DRESSLER, J.; RIßE, M.; ANDERS, S.; MADEA, B. Dumping after homicide using setting in concrete and/or sealing with bricks—Six case reports. Forensic Science International, v. 159, p. 55-60, 2006. DOI: 10.1016/j.forsciint.2005.09.010.
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  1. GIBELLI, D.; DI GIANCAMILLO, A.; TABORELLI, A.; PORTA, D.; ANDREOLA, S.; FERRO, F.; VITARI, F.; DOMENEGHINI, C.; GRANDI, M.; CATTANEO, C. Burial of piglet carcasses in cement: A study of macroscopic and microscopic alterations on an animal model. American Journal of Forensic Medicine and Pathology, v. 34, n. 1, p. 43-49, 2013. DOI: 10.1097/PAF.0b013e31827a0594.